Tradução: S.K.Jerez
As Artes da Imaginação
Post do Ir.'. João Fábio Giória |
Uma investigação inédita da Dra. Marsha Keith Schuchard, revelou as assombrosas conexões dos arquitetos da antiguidade com dois sistemas de trabalho mental, a meditação Cabalística e a Arte da Memória. Numa análise retrospectiva, faz todo sentido que os arquitetos da antiguidade tivessem desenvolvido a técnica da imaginação ativa muito mais do que somos capazes hoje. Também, dado que os antigos arquitetos, desde Stonehenge até Chartres, se ocupavam primordialmente de construções sagradas, é certo que suas imaginações estavam cheias de mitos e símbolos religiosos. A construção mental de templos e igrejas era inseparável da meditação no significado desses mitos, enquanto que o esforço intenso da imaginação podia facilmente passar a ser uma experiência visionária.
Os séculos doze e treze que viram o surgimento das catedrais no ocidente cristão também foram anos dourados para os cabalistas e sufis. A prática da imaginação ativa é a essência da Cabala, na qual o manejo mental de letras, números, e formas geométricas em duas e três dimensões supostamente leva à compreensão do plano criativo de Deus. Esse entendimento pode eventualmente levar ao cabalista à convicção de conhecer Deus. As mesmas técnicas eram praticadas pelos sufis, como foi mencionado no segundo artigo desta série (“Zoroastro”).
A Arte da Memória, conhecida pelos antigos, estava relacionada a estas práticas meditativas, mas era especificamente arquitetônica: sua técnica básica era imaginar uma construção, na qual as imagens simbólicas das coisas a recordar seriam postas, consecutivamente, nas paredes e nos aposentos. Na Idade Média do cristianismo ocidental, foram os judeus e os islâmicos, amiúde vivendo pacificamente lado a lado, que cultivaram tais técnicas e as artes a elas associadas: as matemáticas, a arquitetura e a engenharia. Elas passaram, com o tempo, ao mundo cristão e vieram a formar parte das ensinamentos secretas das guildas de maçons, cujas imagens revelam suas origens por serem tiradas exclusivamente do velho Testamento.
A tradição esotérica ocidental sempre enfatizou o uso da imaginação como o meio primordial de acesso aos mundos superiores. Todas as escolas esotéricas, até onde eu sei, instruem seus alunos na visualização e imaginação criativa. Os sentidos internos podem ser fortalecidos, da mesma forma que os músculos de um atleta ou a destreza de um músico são desenvolvidos através do treinamento. O tempo, o esforço e a dedicação que se requer são comparáveis, nos três casos, da mesma forma que a necessidade de uma predisposição genética.
Aqui, nosso interesse é em ambos os usos da imaginação: o esotérico como veículo para entrar nos mundos internos, e o exotérico, para a educação e a doutrinação. Há várias maneiras de estimular a imaginação, incluindo o jejum, a privação do sono e uma ampla série de drogas. A meta é superar sua usual imprecisão e aspecto confuso e conseguir um grau de clareza e realidade que rivalize com o estado de vigília.
Os monges irlandeses medievais foram dos primeiros e mais entusiastas exploradores do reino visionário, ao qual experimentaram de um modo semi-cristianizado ainda devido às tradições pagãs de sua terra. Era “outro mundo” bem definido, com suas próprias marcas (landmarks) e habitantes, incluindo as fadas e duendes, que encontraram seu lugar na cosmologia cristã como anjos caídos. Usualmente se chega ao Outro Mundo depois de uma viagem imaginária por mar para o Ocidente. Está tão cheio de aventuras quanto a própria Irlanda, porém mais cheio de santidade, onde o viajante amiúde se encontra com espíritos não caídos vivendo em jardins edênicos onde são celebrados uma liturgia de canto e uma dança sagrada. Tudo nesse mundo é mais cristalino, as frutas mais deliciosas, os animais e os pássaros mais mansos e dotados da fala.
Naturalmente as viagens irlandesas seriam hoje fantasias ou ficções, e culminam como todas as “viagens da alma” medievais: a Divina Comédia de Dante. A erudição racional não conhece nenhum intermediário entre fato e ficção, e já que essas ilhas ocidentais, e muito menos o Inferno, o Purgatório e o Paraíso não existem, o que ali acontece tem que ter sido inventado. Mas os eruditos racionais em geral ignoram o funcionamento da mente criativa. Não conhecem esses êxtases nos quais o poeta contempla “formas mais reais que o homem vivente” que logo trata de captar em verso. Se os conhecessem, as chamariam de alucinações.
O treinamento dos Cabalistas e Sufis, sujeito como o estava a suas convicções religiosas e aos ensinamentos de seus livros sagrados, conduzia o viajante imaginativo a encontrar um mundo com uma topografia e população definidas. Obviamente, as versões judaica e muçulmana diferiam, salvo, talvez, no terreno em que os anjos e seus céus davam indícios da presença de Yahveh, ou Alhah. Mas as duas eram consequentes. O propósito de visitar essas regiões por meio da meditação era a purificação da alma através da experiência dos mundos superiores, não a indulgência na Disneylândia astral, familiar aos consumidores de alucinógenos. Os devotos esperavam se encontrar com a confirmação de sua fé, a qual, na maioria das vezes, conseguiam. Se seus relatos eram copiados e circulavam, era para alentar a outros e fortalecer toda a trama. Só surgia a torpeza quando a sublimidade da experiência tornava os viajantes insubordinados ao dogma exotérico e, voltando à Terra, emitiam opiniões heréticas. Por arrebatamentos assim os sufis Al-Achaj e Sohrawardi foram executados.
Certamente, Dante não descreve um cosmos judeu ou muçulmano, mas sim um baseado em uma doutrina cristã e especialmente escolástica, e muito colorido, especialmente no Inferno, por suas próprias inclinações pessoais e políticas. Sua narração é tão circunstancial, tão vívida, detalhada e poeticamente memorável, que por séculos alimentou a imaginação de seus compatriotas. Ler Dante ou qualquer outro trabalho sobre a imaginação visionária, é compartilhar de modo passivo essa experiência, que é tudo o que a maior parte de nós pode esperar ou desejar. Mas não se deve menosprezar o poder destes trabalhos da imaginação. Suas imagens míticas e símbolos se alojam em nossas próprias almas e povoam o mundo interior de nossos sonhos. Na grande maioria dos casos, são mais fortes que as personalidades às quais invadem e doutrinam. O cristão medieval, que vivia sua vida envolvido nos relatos, cantos, poesia e imagens visuais da fé cristã, não podia ser outra coisa além de cristão. Da mesma forma, o muçulmano medieval tinha que ser muçulmano. Um estava tão convencido de um céu de santos e anjos cantando, como, o outro, de um jardim do Paraíso cheio de núbeis virgens. Cada um estava verdadeiramente disposto a arriscar sua vida combatendo contra o outro.
Poucos séculos depois de Dante, Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, desenvolveu um sofisticado método de imaginação ativa que serviu exatamente para o propósito de doutrinação. Seus exercícios espirituais estavam destinados a ser a base da educação jesuíta, especialmente para aqueles que se uniam à Ordem, mas também em versões modificadas para meninos e laicos. A parte central dos exercícios era a imaginação de episódios dos Evangelhos, que deviam ser evocados internamente com a maior realidade e detalhe que fosse possível. Não só despertava os sentidos internos mas também as emoções, para que os sofrimentos de Jesus, os gozos e os pesares de Maria, etc., se convertessem nos do espectador. A imaginação tem um poder tal que, em casos excepcionais, através de algum processo psicofísico inexplicável pela ciência médica, aparecia um estigma no corpo do devoto.
A confiança que os jesuítas tinham no efeito formador da imaginação também os levou a se converterem em pioneiros nas artes do teatro e da arquitetura teatral que, enquanto cativavam e divertiam, imprimiam as imagens desejadas nos sentidos internos e o alma. Não é de estranhar que Athanasius Kircher, um jesuíta, que encabeçou o desenvolvimento da “lâmpada mágica” e que descreveu as primeiras imagens da luz em movimento. O que poderia haver feito com o cine!
No século dezoito ocorreu um dos acontecimentos mais fenomenais no mundo da imaginação: o responsável foi Emmanuel Swedenborg, cientista e estadista reconhecido. Quando jovem, Swedenborg havia estudado as práticas cabalísticas na comunidade judaica de Londres e havia penetrado em alguns dos segredos da respiração controlada e da yoga sexual, como poderíamos chamá-la hoje. Isso assentou as bases para que pudesse penetrar, em 1744, na idade de 56 anos, nos céus e infernos do universo. Passou o resto de sua longa vida escrevendo tratados teológicos baseados em suas visões. Suas intermináveis crônicas sobre conversações com os espíritos são, frequentemente, cômicas – e ele era bem consciente disso; não obstante, não há nenhuma sugestão de que a experiência fosse imaginaria ou meramente alegórica. Swedenborg humildemente aceitou seu papel como portador de uma nova revelação de Deus para a humanidade e como fundador de uma nova Igreja para uma nova era.
O que mais pode fazer um visionário, uma vez que se entregou, de corpo e alma, ao poder da imaginação? Não pode pôr em dúvida que o mundo celeste que lhe foi revelado com realidade tão palpável possa não ser um artigo genuíno.
O começo do século dezenove viu um desenvolvimento adicional na exploração do mundo imaginal. Os seguidores de Anton Mesmer descobriram que as pessoas, em geral as mulheres, que haviam sido colocadas sob transe hipnótico, podiam, às vezes, descrever lugares que não eram desta Terra, e responder perguntas acerca de coisas que nunca conheceram em estado de vigília. Alguns, como Swedenborg e Dante, tinham podido conversar com espíritos de mortos e, portanto, descrever o mundo que supostamente nos espera depois da morte. Não importa que os “espíritos” fossem frequentemente descobertos em disparates e mentiras (como Swedenborg já havia notado), ou que os diversos relatos de outros mundos fossem contraditórios: os médiuns diziam o que seus ouvintes estavam ansiosos para ouvir.
A grande questão sobre o que se experimenta na imaginação ativa tange à sua objetividade. Os sufis da Pérsia, principalmente Sohrawardi, afirmaram que o mundo de Hurqalya ao qual acessavam interiormente era, na verdade, um mundo objetivo, mas sem um substrato material. Portanto, outros seguindo a mesma prática chegavam aos mesmos lugares, tão certamente como dois viajantes a Bagdá estariam de acordo de que haviam visitado a mesma cidade. O mesmo princípio se aplica à prática cabalística, ainda que aí a experiência tenda a ser matematicamente mais abstrata.
Uma possibilidade que não costuma ser levada em conta é que estes filósofos-místicos tenham efetivamente encontrado uma saída da Caverna de Platão para o Mundo Real (ver o quinto artigo desta série, ”A Tradição Platônica”). Na filosofia platônica este é, definitivamente, um mundo objetivo mais real que o material. Mas como explicar as diferenças impressionantes entre o que ali é encontrado dependendo de qual é a religião do filósofo? Enquanto o filósofo de Platão se encontrava com os deuses gregos, o sufi encontra anjos e “mestres que ascenderam”. Os cabalistas podem explorar, órgão por órgão e pelo por pelo, o corpo macrocósmico de seu Deus. Os cristãos, como Dante e Swedenborg, provavelmente viam o Inferno e o Céu, e assim sucessivamente. As diferenças são suficientes para que o agnóstico moderno não-viajante se torne completamente cético acerca da objetividade do outro Mundo.
É como se cada religião, e cada seita, fosse uma espécie de clube exclusivo. As mentes dos membros estão cheias, desde a infância, de um conjunto de ideias e símbolos que estruturam seu mundo imaginativo, sua filosofia e suas expectativas de vida após a morte. As catedrais e igrejas medievais eram depositárias dessas imagens e símbolos, e meios de doutrinamento no melhor sentido; pois quando há consenso imaginal em uma sociedade, a discórdia é reduzida ao mínimo. Quando essas pessoas pouco comuns, dotadas e treinadas para as práticas esotéricas, embarcavam em suas meditações, o faziam dentro desse mesmo consenso. Eles viam, ouviam, sentiam e cheiravam um ambiente que podia ser novo e cheio de maravilhas e surpresas, mas que ainda estava controlado por sua fé e suas expectativas. Só quando o místico fosse além dos sentidos internos estaria liberado do que havia aprendido através dos sentidos externos. Então, como todos os estudantes de misticismo sabem, as descrições se tornam inseguras: o místico não pode encontrar palavras para a experiência. Tudo é luz, unidade e paradoxos onde a mente racional não tem em que se apoiar.
Posto que a maioria de nós (e eu, enfaticamente, me incluo) não somos especialistas em viajar no mundo interno do imaginal, penduramos nas paredes dos palácios de nossa imaginação quadros que outros nos deram. Se tivemos sorte, nossos pais começaram o processo contando histórias e nos dando livros com páginas que encheram nossas imaginações com imagens arquetípicas de animais falantes, heróis e heroínas, lugares distantes, comédia e tragédia. Talvez eles também nos tenham criado em uma das tradições religiosas ricas em imagens. Podemos ter deixado seus dogmas para trás enquanto crescíamos, mas sua mitologia é um poço do qual nunca deixaremos de extrair coisas.
Se fomos desafortunados, nossos pais nos colocaram em frente à televisão. E essa é a medida do abismo entre o mundo imaginal dos pobres e ignorantes camponeses medievais e o dos camponeses de hoje.
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