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sábado, 31 de agosto de 2013

O VIRA-LATA

 
Anoitece.
 
Daqui a pouco irei procurar um cantinho escuro de uma ruazinha qualquer, para dormir. Estou faminto! Hoje só consegui um restinho de comida fuçada na lixeira de um restaurante por quilo... mas agradeço a Deus, pelo dia de hoje.
 
Quem sabe amanhã seja um dia melhor.
 
"C’est la vie", diria um amigo francês.

Ainda me lembro da mamãe, juro! Ela cuidou de mim, me amamentou, me empurrou com o seu focinho gelado para eu dar os meus primeiros passos.... e eu caia, desajeitado!. Tenho saudades do aconchego do seu corpo, dos meus irmãozinhos, todos juntinhos, por ela aquecidos. Ah, quando a mamãe via alguém se aproximando de nós, sabe lá para quê... Ela rosnava ameaçadora, protegendo-nos, deixando-nos tranquilos, seguros. Mas eu cresci, e de repente me vi por aí, lutando pela minha sobrevivência. Meus dois irmãozinhos... acho que também estão por aí, se ainda vivem. Nunca mais vi a mamãe.

Eu não sou agressivo. Pelo contrário, sou passivo, tímido. Tenho medo de tudo e de todos. Tenho medo até de receber um carinho, pois, certa vez, desconfiado, mas abanando o rabo, aproximei-me de um rapaz, que, parecia, iria me acariciar... e quase me acerta um chute. Deu uma gargalhada. Não me acertou o focinho porque pulei para trás, assustado. Saí correndo, o rabo entre as pernas! Pensei: por que será que nos fazem isso? Eu não estava fazendo nada de ruim... só procurava alguma coisinha para comer... ou, quem sabe, receber um afago.

Vivo perambulando pelas ruas, onde até já vivi fugazes romances...

Às vezes vejo um semelhante que também vive nas ruas, mas é fiel amigo e faz companhia a um mendigo, que o adotou, cuida bem dele, protege-o. Divide com ele a pouca comida que consegue, apenas em troca de sua companhia. E o meu amigo, assim, é feliz. Dorme na rua, como eu... mas sob o mesmo cobertor de seu dono! Alguns outros tem mais sorte, quando adotados por nossos irmãos humanos – irmãos, sim, pois também somos filhos de Deus - de  boa índole. Passam a ter uma vida decente, saudável: casa, boa comida e roupa lavada! Até salão de beleza – que chamam de pet shop – onde tomam banho, fazem as unhas, aparam os cabelos e de onde saem perfumados! Os rapazes de gravatinha, as meninas, com fitinha! Vão embora de automóvel. Às vezes os vejo, latindo para mim, da janela dos carros. Acho até, que eles se sensibilizam com a minha situação. Mas eu não tive essa sorte... mas eu não tenho inveja disso. Minha vida é andar por aí, timidamente, mas livre. Não faço mal a ninguém, por isso não entendo porque sou chutado, enxotado...

Muitas vezes ouço o “Passa!...” e tenho de me afastar, rapidamente, cabisbaixo.
 
Acha que isso não me dói? Eu tenho sentimentos. Sinto mágoa, tristeza, dor física e moral. Sofro calado. Dizem que isso é visível em nós, cachorros. Vez por outra, tenho até momentos de alegria, quando uma alma bondosa me oferece algum resto de comida!  Ou me faz um cafuné, como dizem.  Sorrio e abano o rabo.

Pois é. Ando por aí, perambulando. Tenho medo, de tudo e de todos, do perigo das ruas...

Num dia desses, vi um irmão vira-lata ser atropelado por um carro, quando atravessava uma rua. Coitado... Vi seu ventre dilacerado, o sangue escorrendo no asfalto, seus olhos suplicantes, atônitos, sem entender o que acontecera. Morreu ali, rapidamente. Baixei a cabeça e fui embora, com aquela dor no coração. Gostaria, mas eu nada poderia fazer. O atropelador? Nem parou. Deve estar culpando o pobre coitado... “Sujou o meu carro, filho da ...!”

Sou um vira-lata.  Não tenho maldade. Só procuro um pouquinho de comida para sobreviver e, à noite, um lugarzinho para dormir. Não tenho preguiça. Se eu pudesse trabalhar, para ganhar o meu sustento, eu o faria... Dizem que nossos ancestrais eram livres, caçavam seu alimento. Depois o homem nos domesticou... Deu no que deu... Não temos onde, nem sabemos como caçar o nosso alimento.

Pela televisão – acho que foi na Globo, no JN -  em uma vitrine de loja na rua, eu soube, há pouco tempo, que em Londres, raposas são encontradas perambulando até nos jardins  de residências, em busca de comida. Porque os homens avançaram sobre os campos e matas em que viviam e de onde tiravam seu alimento.

Entre os irmãos humanos, existem também aqueles que não  tem trabalho, ou não o querem, aqueles que não tem onde morar, nem o que comer regularmente, e nem onde dormir. São chamados de moradores de rua, ou sem-teto.
 
Nós, cachorros, na mesma situação, somos chamados de vira-latas... É uma expressão pejorativa? Parece... Mas, hoje, muitos irmãos humanos se referem, carinhosamente, ao seu cãozinho que era um sem-teto, de meu vira-latinha! Se lhe perguntam,  respondem:“ É meu vira-latinha...” Simpático,  não?

Gostaria de ser, também, um vira-latinha, ter um dono, uma dona. Como não o tenho, prefiro ser apenas um vira-lata. Mais simpático do que a aquele ridículo Sem Raça Definida, que por hipocrisia - é por hipocrisia mesmo - chamam de S R D... , “cacete!”.
 
Mas nós, cachorros, não temos aquilo que muitos dos nossos irmãos humanos tem: inveja, preguiça,  ódio, vícios, falsidade,  e todo tipo de desvio moral.
 
Eu... sou um vira-lata.... um street-dog, como diriam os nossos irmãos norte-americanos. Não faço mal a ninguém.  Só quero, só preciso um pouquinho de comida para conservar a vida que Deus me deu!
 
 
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Nota Importante:
 
O amor que nosso irmão Jorge tem pelos animais encontrou retribuição de uma daquelas formas que ninguém ainda conseguiu explicar.
 
O "vira-latinha" dele demonstra possuir dotes artísticos, mais até que uma simples demonstração o bicho parece ter sentimento aflorado. Toda vez que ouve Noturno Op.9 - nº 02 de Chopin, "estufa o peito" e "solta a voz", talvez querendo fazer o solo... Só vendo (e ouvindo) prá crer - o nome do simpático "solista" é Toby:

 
(o som está um pouco baixo, mas dá para ouvir)
 

 

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