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segunda-feira, 12 de agosto de 2013

REMINISCÊNCIAS - O PÔTI

O PÔTI
 
 
 
Lembro, com muitas saudades e emoção, do querido Pôti.
 
Não me esqueço de sua alegria sincera, sempre que chegávamos ao sitio do vovô Yamashiro, onde ele morava, a mais ou menos três quilômetros da vila de Cedro, litoral sul do Estado, geralmente nas nossas férias escolares de verão, em dezembro / janeiro, local das mais saudosas e gratas lembranças!
 
Saudades de verdade! Aquela sensação indescritível do nunca mais. Saudades indeléveis povoadas de matas, de pés de jambo, de picadas de borrachudos e de pernilongos, de pés de caqui, de tios e primos, do vovô, da vovó, de jabuticabeiras, de urtigas, casa de tábuas e barro, flores silvestres, de bosta do cavalo Trujilo, vara de pesca, arco de guatambu e flechas de bambu com pena de galinha, de bosta de galinha, eucaliptos, goiabeiras, lama, os camaradas (empregados do sítio) e o negro Otávio, bonzinho, uma espécie ajudante-de-ordens do vovô; espinho no pé, estrada de terra, noites escuras de meter medo, lamaçais, minhocas, grilos, barquinho feito de caxeta, pipas (que a gente chamava de papagaios), cigarras, sabiás, luz de lamparina ou de lampião a gás (o famoso Petromax, acho que era a querosene, com a camisinha que, acesa, ficava incandescente, produzindo a claridade), o trem da manhã, do almoço, do café e da janta, pintassilgos, rolinhas, água de poço retirada com um balde na ponta de uma corda, bananeiras, laranjeiras, tatu, periquitos, gaviões, lagarto, temporais, um galo, piquiras, manditingas e cascudos, brejauva, o canto do galo anunciando o amanhecer, cipós onde os Tarzans se penduravam, abacateiros, coquinhos, pés no chão, cobras d’água e, às vezes, uma jararaca ou uma coralzinha, tiriricas, carrapatos, pião, arapuca, melancia resfriada em uma tina de água fria, a primavera na entrada, por sobre o velho portão de madeira, os dois chapéus-de-sol, a leitoa e seus porquinhos, as galinhas e seus pintinhos, mais bosta de galinha, roupas no varal,  calor,  carrinho com rodas de carretel de linha de costura, guaraná sem gelo, estilingue, uma espingarda calibre 36, livros infantis, gibis, vitrola a corda e agulha, vinagre de banana que a vovó fazia, bolinhos caseiros, nabos e cebolinhas em conserva (que delícia!), batata-doce, caminhadas até a vila, para compras. Quantas e quantas lembranças!...
 
Na grande baixada, o extenso bananal do vovô, cortada por um córrego que, junto a um pontilhão, era a nossa piscina nas tardes ensolaradas, quentes e úmidas da região. Por entre as bananeiras, uma linha de trole – em grande parte com trilhos de madeira – de alguns quilômetros, construída pelo vovô, para transporte de cachos de bananas nanica que produzia, tipo exportação, como diziam os adultos, até o Desvio Furuya, uma estaçãozinha de trem, onde eram embarcados em vagões da Sorocabana e transportados para Santos e, dali, de navio, para a Argentina, segundo ouvíamos dizer. Às vezes, inundações de verão do rio Juquiá! Eu não imaginava, mas agora acho que o vovô sofria e perdia muito com elas.
 
No lado oposto à casa do vovô,  a um quilômetro, mais ou menos, por um estreito caminho pelo meio da mata e uma baixada, a família Akamine, amiga de longa data.
 
Esse era o pequeno paraíso daquelas nossas férias escolares de verão!
 
Esse  era o mundo do Pôti.
 
1948, 1950... e princípios dos anos  60.
   
Pressentindo  a chegada de visitas, lá surgia o Pôti, correndo, balançando o longo rabo   e latindo alegre morro abaixo, pelo estreito caminho marcado sobre a grama, que dava acesso à casa do vovô.
 
Sim, o Pôti era um cachorro, um daqueles vira-latas comuns, de pelos caramelados, que o vovô tinha em seu sítio. 
 
Pôti era um cachorro alegre, interessado, um bom sujeito... Estava sempre disposto a brincar, a participar de tudo. Mas era também  muito emotivo. 
 
Lembro-me, certa vez, o vovô estava sacrificando um enorme leitão para as festas  de começo de ano (os japoneses comemoram a chegada do Ano Novo), com uma enorme e pontiaguda faca. O suíno berrava, aliás, parecia que chorava alto, desesperadamente, enquanto seu sangue jorrava e era colhido numa bacia. 
  
O Pôti, sentado em frente, com o cenho franzido, tremia, mas tremia tanto!... Parecia que estava emocionado, vendo o sofrimento do leitão.
Não sei por quantos anos todos convivemos com o Pôti naquelas inesquecíveis férias escolares. 
 
Mas o Pôti também auxiliava a vovó. Ele era um exímio capturador de galinhas. Quando a vovó queria preparar um frango para o almoço ou jantar,  atraia as penosas através do artifício das  porções de  milho atiradas em leque, no terreiro.
 
O Pôti punha-se de prontidão. Sabia que teria uma missão a cumprir!
 
No meio daquela aglomeração agitada de aves, a vovó escolhia um frango, já bem carnudo e apontava: “Aquêre, Pôti!”
 
O Pôti identificava imediatamente o condenado e iniciava a perseguição, olhar determinado, concentrado no fugitivo.
 
A galinhada toda se alvoroçava e fugia em desordem, as crianças, digo, os pintinhos piando desesperados atrás de suas mamães-galinhas. Era um deus-nos-acuda! Algumas daquelas aves até conseguiam alçar pequenos e desajeitados vôos.
 
Mas o Pôti sabia qual era o seu alvo e não falhava.
 
Após alguns segundos de ziguezagueante perseguição, lá estava o Pôti, ar vitorioso, com as patas dianteiras pressionando no chão a sua presa, aguardando a chegada da vovó. (Ah! que saudades do vovô, da vovó. Do  forno de barro da vovó, ao lado do paiol, do seu fogão à  lenha na cozinha de chão fresquinho de terra batida! Ah! Quantas saudades! Nunca, nunca mais!....)
 
À noite o Pôti assumia as responsabilidades de vigia noturno, atento a qualquer ruído estranho nos arredores da casa. Seu latido era másculo, potente!
 
Com o passar dos anos, o Pôti às vezes parecia um pouco cansado... reflexo da senilidade canina. Mas era sempre gentil com todos os seus familiares  e amigos.
 
1960... 61?...Coitado do Pôti. Já idoso, acho que ele nunca  entendeu por que fora deixado, no sítio, quando o vovô e a vovó, já idosos  e merecendo um descanso junto aos seus filhos e netos, mudaram-se para São Paulo. Eles também com certeza sentiram muito a separação, mas, na época não havia outra solução. 
 
Mais tarde soube  que quando da mudança do vovô e da vovó para São Paulo, o Pôti não ficara no sítio, mas sim, fora dado para uma família amiga, na vizinha cidade de Juquiá. Em seguida ele retornara ao sítio e, ao que parece, como encontrara a velha casa vazia, buscou abrigo na casa daquela família vizinha e velha amiga, a Akamine,  que ele  bem conhecia. Ali, com o carinho daquela família, ficou até morrer. Deve ter morrido triste, saudoso, nos primeiros anos da década de ’60.
 
Soube, também, que por algum tempo o Pôti ia até a estação de trem da vila de Cedro, da velha Estrada de Ferro Sorocabana, ramal Santos-Juquiá, onde pela última vez estivera com o vovô, com a vovó, ou com uma das tias, quando fora levado para aquela família, em Juquiá, no trem da hora do almoço, e que retornava para Santos, à tarde, como trem do café. O Pôti com certeza aguardava o retorno, que nunca aconteceu!... 
  
Que eu saiba, o Pôti nunca teve uma companhia feminina, em casa. Que eu me lembre, nunca o vi namorando. Mas com a sua  ginga, sua simpatia, deve ter amado muito... deve  ter seduzido muitas cadelinhas, no  pedaço!
 
Coitado do Pôti! 
 
Por todos que o amaram, e que você amou e alegrou, perdão, Pôti! Muito obrigado por tudo, Pôti!
 
Penso: deve existir um céu também para estes nossos irmãozinhos, onde eles descansam em paz!  Acredito que -  pela pureza de seus sentimentos -  mereçam o mesmo céu dos homens, de quem eles sempre foram fieis amigos!
 
Ir.'. Jorge Nagado
Advogado e Amante das Letras

 

2 comentários:

  1. Respostas
    1. Muito obrigado, Rodrigo.
      Você está me incentivando a "confessar" outros "crimes" que eu venho cometendo...
      Um abraço.
      Jorge.

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