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terça-feira, 10 de setembro de 2013

REFLEXÕES DE UM PRISIONEIRO

 
 
Autor
Ir.'. Jorge Nagado
Estou preso há um ano, dois meses e doze dias.

Fui levado sem um mandado judicial, como diriam os advogados, mas ninguém interferiu em meu favor. Nem a Comissão dos Direitos Humanos...

Juro, por tudo quanto é sagrado: nunca agredi um semelhante, nunca roubei um centavo nem soneguei impostos, mesmo porque pertenço a uma das categorias imunes de tributação. Nunca magoei ninguém. Desonestidade, corrupção? Nem pensar!

Lembro-me de um dia em que estava eu, tranqüilo, no bosque em que costumava flanar, e por pouco não fui assassinado! Ouvi um barulho ensurdecedor, e vi que mataram um amigo meu que por ali também folgava.
 
Foi morto, também não sei por que, pois o sabiá-piranga era um boa-praça, cantor solitário, apaixonado.
 
Ah, sim, eu sou um passarinho. Ou, me identificando melhor, sou um canário-da-terra.
 
Pois é. Eu vivia tranqüilo, lá na mata, voando para lá e para cá, cantando e gozando da liberdade que Deus me deu. Desde pequeno aprendi a voar livre e a cantar.
 
Certa manhã, estava ali, fazendo coro com meus amigos, quando fui preso. Não sabia por que estava sendo preso mas, de repente, perplexo, me vi na prisão. Sozinho.
 
Lutei como pude, tentando a fuga: atirava-me contra aqueles rígidos fios de arame de aço que guarneciam a cela, agarrava-me a eles tentando passar o meu corpo entre as linhas paralelas que formavam, mas por ali sequer passava a minha cabeça.
 
Lutei desesperadamente por minha liberdade, lutei o quanto pude, até a exaustão. Até ver manchado de sangue o meu peito e sentir as minhas asas latejando de dor, de tanto nervosamente se debaterem e se chocarem contra aquelas barras de aço.
 
Tudo em vão.
 
Tentei recuperar a minha liberdade, novamente, quando iam me transferir para uma nova cela, com água fresca e boa comida todos os dias, e onde estou até hoje: fugia rápido de um canto para outro da estreita cela, tentando escapar daquela mão enorme e agourenta que me perseguia, mas não teve jeito…
 
É engraçado... aliás, é trágico!
 
Matutando aqui com as minhas penas, cheguei a uma conclusão: somos presos porque nosso cantar é mavioso.
 
Mas a prisão não é motivada pela inveja, pelo despeito. Somos presos porque os nossos donos admiram o nosso canto e querem ter-nos, até por vaidade sua.
 
Tratam-nos bem, dão-nos o melhor alpiste, a melhor ração, mas mantém-nos privados da liberdade, que eles mesmos dizem ser um direito sagrado... ora, bolas!
  
Penso eu: mesmo na prisão, da mesma forma continuamos a cantar. A natureza nos fez assim. Dizia até uma antiga canção folclórica dos homens que “ furaro os zóio do assum-preto, para assum-preto cantá mió; furaro os zóio do assum-preto, para assum-preto cantá di dô ”. Se não era isso, era quase isso que dizia, ou diz.
 
Terrível!
 
Vocês já viram, ou ouviram, perversidade maior?
 
Pois é. Já nem ressinto a revolta pela qual passei quando me prenderam; não ressinto as asas doloridas ou o sangue tingindo-me o peito de escarlate, na minha desesperada tentativa de fuga.
 
Eu canto, mas tenho saudades da mata onde nasci e onde eu cantava e voava em liberdade. Tenho saudades da mata onde, atendendo aos desígnios da natureza, com o meu canto seduzia as fêmeas para um romance fugaz, realizando o milagre da preservação da espécie!
 
Estou preso. Acredito que condenado à prisão perpétua. Até a morte.
 
Por certo acabarei numa fétida lata de lixo, envolto num saco plástico de supermercado. Ou, quem sabe, pela ternura de uma criança, numa cova rasa de jardim. Ou num funeral inglório nas entranhas gosmentas de um gato sem-teto...
 
Mas, um dia, quem sabe, uma Declaração Universal dos Direitos dos Passarinhos dirá:

“Todos os passarinhos nascem livres... Todo passarinho tem direito à vida e à liberdade... Nenhum passarinho será mantido em escravidão... Nenhum passarinho será arbitrariamente preso...”.

Um comentário:

  1. Qualquer um acaba refletindo através desse mais puro exemplo de amor aos animais. Bravo irmão Jorge!

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